terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Areal

A aparência nada mais revela do que um lado: o outro é mistério que é preciso desvendar; o que se guarda no descampado, onde o possível não se vê e não se espera e, por detrás da desolação, vemos a realidade por miragem. O areal é a revelação do que parece ser, do que se quer dizer e muitas vezes não está lá, mas se tem a certeza de que existe, em alguma parte do visível, o invisível.


Give me a wildness whose glance no civilization can endure.


Henry David Thoreau (1817-1862), in Walking


Venturoso também em tuas securas
nos areais branquejados e estéreis

Nas imensuráveis vacuidades dunosas
Areentas Omissas

De até ao horizonte ver nada
e de nada abaixo nem por sobre
E nada além do imenso nada

(Um nada tão oniforme, porém!)


Renato Gonda (1959-), in Fugitivo dos Homens


– (...) nunca vi nada, nada, que se possa comparar
com o deserto... Pai do Céu, como é bonito!...
– O que quer dizer?
– Não sei explicar... De resto, não creia que tenho sempre
saudades daquelas palmeiras... (...) Só quando me sinto triste...
(...) ouça bem: no deserto... no deserto há tudo e não há nada...
– Que quer dizer com isso?
Sem reprimir um gesto de impaciência, murmurou:
– O deserto... é Deus sem os homens!...


Honoré de Balzac (1799-1850), in Uma paixão no deserto.


Me admira ver-te
preso
casco jogado
neste areal.


1.

És perfeito,
porque nascido do acaso.


Eu, que sem preocupação pude buscar-te,
aceito tua sina de camaleão de imagens.
Teu prazer quer alvuras e eu,
amadurecida de teus tons, sou mais frágil
entre as mãos que encerram o destino.
As manhãs, os breves sussurros,
o mastigar lento de maxilares.
Conheço-te como a mim,
tua casa, tuas vestes, tudo que te pertence.
Onde colocares a mão, eu sei,
aqui estiveste.
Não te amo pelo nome.
Amo-te pelo que transpareces.

2.

Sei
a miragem de me ver deserta,
arrancados de mim todos os desejos,
enquanto desejo, ainda.

Sei que estou aguardando,
noite agora, amanhã, depois.
Sei que nas horas de fastio,
destruo o silêncio
e construo outro.

3.

Tua face na treva
tronco em meio à ventania
sob folhagens e tempestade.
Estás aqui e te dou de beber
de meu seio esquerdo,
porque mais farto
e teus lábios sorvem
a seiva da árvore que nos acolhe
em sombra.

4.

Me precipito,
vão que se abre sob os pés.
Tombo, língua e forma
dissecadas,
palmas, risos,
teu olho e tua boca
difamantes.
Temporal longicidade
de espectros.

5.

Nada de perguntas,
não até que eu descubra
o nó para desatá-lo
ou até que o nó não exista.

6.

Fatal, como tudo
que é cheio de sentido,
livrarmo-nos do mal
que faz da vida esse jogo
de peças que faltam.
Um dominó ao contrário.
E nós o resgate.

7.


I
Abissal, teu olho
pousa sobre o mármore.
O lago penetra a cor do dia,
estreitos que vasculhamos
toda vez, pela manhã.

II
A viagem, longa,
arrastava-nos para mais longe
que a memória dos lugares
por onde passávamos.

III
Almas se entendem
e corpos se entendem melhor.
Um murmúrio de horas
escorre sem deixar vestígios.

IV
Tens desejos de um menino.
Teu riso faz parte dos barulhos da casa.
Teu riso ecoa
dentro do coração vazio.

8.

Porque te quis e ninguém te alimentava
de paixões,
vieste, olhos mareados
e tal foi tua fome,
que abraçaste inteira a minha vontade
de dar-me.
Não quis ir ao teu encontro,
senão como fora a tua vinda
na véspera, cheia de expectativas e silêncios.
Não te esperei em vão:
pude aguardar-te, porque quis que viesses
e por que te quis antes de mais nada,
meu nome tornou-se precioso para ti,
com saudade e vozes dentro,
ruídos de uma vontade estranha,
porque não esperavas por mim
e me buscaste.

9.

Existe, além da parede,
a espessa aspereza do tempo.
Todo olhar é denso
quando contempla o outro.
(Mergulhamos na fotografia
impressa da memória
e ficamos retidos,
adereços discretos da paisagem.)

10.

Espera o fruto.
A hora se biparte e o alçapão está fechado.
Atinges o momento do ciclone,
a órbita aberta do planeta.

Espera a volta.
Teus ombros nus encostados na parede,
tua face na penumbra,
retendo as luzes do quarto.

Acostumei-me a observar o indefinido.
E a aceitar tudo que me dissessem,
mesmo adeus.
As lembranças daquilo
que não guardei,
atos e falhas dos meus gestos
e não passar sua sensação de eternidade.

(Em cada pedra, a seiva
que a mantém úmida.
Pedregulho imerso
na transparente alma marinha.)

E a esperar a travessia,
antes do sinal das embarcações.
Sem vento que antecipe a manhã.

11.

Temos torso
e mãos de deuses
a indagar
a visão sobre o mar.
Encontro
de falas longínquas:
talvez membros do mesmo corpo
agora reunidos.
Tempo: limo entre os dedos.
Fogo contido
nas escamas dos peixes.

12.

Mistério há em nada dizer,
ou dizer tudo.
Teu pensamento,
cativando o sonho,
esfinge pressentida.

Mistério, em nada possuir,
ou possuir tudo,
senhor de mares e montanhas,
Neptuno caído, Ulisses regresso.

Nada ser e ser tudo.
Refazer o feito, sem saber.

13.

Tudo tem teus ruídos.


Quando voltares, verás as portas fechadas
e esperarás a noite chegar.
Entrarás no quarto,
passarás a mão sobre os móveis
e me olharás, enquanto durmo.
Talvez vás, novamente, sem despedir-te.
Mas quando não fores mais aquele que volta
e tomares a ti o prazer da colheita,
então estarás no limite de conhecer
os motivos que te fazem estar aqui.

14.

Onde estás
ser outonal e primeiro,
oco de árvore
escavado em mim?

Sopro arquitetura entreato.
Simples como tuas coisas mais amadas
e este o simples abril
que conheceste.

És tal parte de tempo,
antepassado passando adiante.
Tudo desfaz-se diante dos olhos,
para que não mais vejam
o que puderam ver agora.

Aguardo-te, como se viesses.
A espera faz tudo isso mais completo.

15.

Não importam mais os nomes
dados às coisas.
Serão as mesmas,
encerradas no pó
que se sedimenta em tudo.
Retiremos as vendas,
os panos,
as louças dos armários.
Façamos a ceia dos antigos,
com os objetos nos mesmos lugares.
E esperemos os que vierem
amanhã.

16.

Décima Lua

A laranja era a única luz dentro do quarto.
Egon Shiele


Enquanto as barcas sobrevoam o ar estático,
estamos entre os verdes olhares de gatos.
Tudo é belo.
Penetramos as células humanas,
passagens entre orifícios e arestas.
À noite, procuramos nos ver melhor.
É o sonho que a habita?
Vivemos e são nossas súplicas
as únicas que se ouvem.
Tudo está parado e se move.
Nada é mais extremo que a permanência.
Ficamos aqui, o segredo entre nós.
As vestes caem e se prolongam pelo chão.
São memórias mais do que tudo
e vasto e largo o pausar das mãos em movimento.
Somos os que desfrutam da pele seca das maçãs.
Enlouquecemos, a nudez a tomar conta,
desfiando as fibras dessa nova borboleta.
O ar impregna-se do mesmo cheiro dos corpos.
Vértebra a vértebra, distendemos o êxtase.
Avolumam-se os seios umedecidos no beijo.
Vocábulos balbuciados, não há som.
Domado o instante, a serpente recolhe-se.
Reconhecemos pelo tato a escamosidade
desse momento.
Da casa inabitada, conhecemos os reféns
e os objetos, danificados pelo tédio.
Sabíamos de tudo, embora não disséssemos.
O cálice preparado, o veneno, dilatadas pupilas.
Nosso nome encravado em pedra.



APRESENTAÇÃO


Entre os primeiros livros de Thereza Christina Rocque da Motta, publicados no início dos anos 80 e este recente Areal permeiam mais de dez anos de muita experiência de vida e amadurecimento literário. Areal pode ser lido como um só poema (mais um envoi, “Décima lua”), uma longa fala amorosa, que se desdobra lentamente, à medida que vai revelando ao interlocutor, o homem amado, os abismos da intimidade e a atmosfera de magia que se instala entre os amantes e o mundo à sua volta. Areal exalta a fé no amor como o centro para onde converge toda inquietação humana, sempre desejosa de ultrapassar os próprios limites: “Amo-te pelo que transpareces”.
Neste ponto, Thereza Christina não esconde seu fascínio pela utopia surrealista: “C’est de l’amour que les surréalistes attendent la grande révélation” (F. Alquié). Por isso, a cada poema, ou a cada desdobramento do mesmo poema, uma nova dimensão de sonho e ousadia se acrescenta ao espaço comum habitado pelos amantes, como que mergulhados em desabalada vertigem: “Atinges o momento do ciclone,/ a órbita aberta do planeta”.A vertigem, porém, se dá apenas enquanto proposta de vida, não enquanto ato poético. A escrita de Thereza Christina, ao contrário da escrita automática dos surrealistas, não busca a abundância e o desbordamento, mas a contenção, metáfora do cioso controle que os amantes pretendem exercer sobre o incontrolável da experiência amorosa. É que o amor absoluto, o de Areal, o surrealista ou o mais antigo, se alimenta sempre de paradoxos.
Carlos Felipe Moisés

PREFÁCIO

A ausência de poesia no Brasil de hoje tem pouco a ver com os vazios que em todos os tempos anteciparam e atraíram a poesia, criados a partir de sábias e incontroladas alusões que se definem às vezes como material poético. Temos sofrido de excesso de evocações, seguido de escassez de resultados, pelo que é possível pensar que o vício da retórica fez em nós estragos que somente um jejum do discurso poderia reparar. Essa dieta se faz de boa poesia, que a seu modo se faz de silêncios bem dosados, que quase sempre se nutre do costume antigo e pouco recordado de escutar o mundo e de sondar a vida.
A diferença entre omissão e silêncio nessa arte de viver que é a poesia, diz tudo que se precisa saber a respeito da beleza e do descobridor da beleza. O poeta, o leitor de poesia, o homem inocente no melhor sentido da palavra, é o aprendiz que não quer ser mestre, porque descobriu (quando sabe que descobriu) que a graça da vida e a paixão sem alvo que move o religioso e o poeta, são filhas desse aprender eterno que sustenta o homem no infinito presente, que já se chamou Walhala, nirvana, paraíso ou wu-wei. A relação mestre-discípulo que o pensamento autoritário modificou no Ocidente, é aqui como no princípio, apenas o aprendizado da percepção, da alegria de obedecer em plena liberdade, sendo sucessivamente aquele que ensina e aquele que aprende, na plena delícia de estar vivo e desperto.
A poesia que se revela como supressão inspirada do supérfluo, com absoluta inexistência de esforço, mas com imenso poder de esclarecimento, é a matéria-prima que falta num mundo que se preocupa demais com petróleo, carvão e plutônio, sem o que se pode com certeza viver. Essa poesia de Thereza Christina Rocque da Motta faz um acordo com o acaso e se constrói nas esperas e nos vazios que geram a criação. Seu trabalho é parente daquilo a que se referia Chuang-Tse, quando disse: “O verdadeiro sábio prega a doutrina sem palavras”. Não há uma poesia que alude, apenas, e uma outra que discursa e se explica. Uma é poesia, a outra não é nada. Esta de Thereza Christina é daquelas que são atraídas e antecipadas pelas alusões que se definem como material poético. Nela estão os vazios que são como as pausas na música e, como elas, distribuem a beleza e preparam o coração.
Luiz Carlos Lisboa

POSFÁCIO

L'amour choisit l'amour sans changer de visage.
Paulo Éluard


A exteriorização do amor não deve causar medo. O amor é realidade e, como tal, é para ser vivido, sem pressupostos, para que dele seja extraído sua essência. E, mesmo assim, há ritos que são seguidos, como voltar-se para o amado, num movimento contínuo e mudo.
Em L’Amor Fou, André Breton, em várias passagens, descreve essa trajetória amorosa, que faz-nos sentir constantemente inebriados e, por vezes, assaltados por dúvidas, que nada têm a ver com o amor, senão com a fragilidade do ser humano. Ele diz: “Esse ser está sujeito a sofrer e, o que é pior, a equivocar-se sobre as razões desse sofrimento. Tendo feito dádiva total de si mesmo, é levado a incriminar o amor, quando o defeito reside precisamente na vida.” E ainda, “perante e contra tudo, manterei que o sempre é a grande chave. Tudo quanto amei – quer o tenha ou não conservado comigo –, sempre haverei de amá-lo. (...) Do amor, apenas quis conhecer as horas triunfais (...) Não nego que o amor tenha contas a ajustar com a vida. (...) Essa cega aspiração pelo que há de melhor, bastaria para justificar o amor tal como eu o concebo, o amor absoluto, único princípio física e moralmente seletivo capaz de responder pela não vanidade do testemunho e da passagem do homem pelo mundo. (...) Só acontece o que não se espera”.
Se fomos unidos pelo acaso, que não existe, então deve existir uma razão intrínseca, mesmo que desconhecida para nós. Ela existe, a partir do momento em que “você me faz bem”. Em hipótese alguma eu tentaria abolir isso por meras razões formais, por medo ou dúvida.
Jamais deve-se renunciar, se o motivo não for o próprio sentimento de renúncia. Para Breton, “há o erro moral, o qual contribuiu para que o amor fosse, através dos tempos, apresentado como um fenômeno decadente e que vem a ser fruto da incapacidade inerente à grande maioria dos homens de se libertarem de qualquer preocupação - seja ela temor ou dúvida – alheia a esse amor (...). No dia em que tivermos conseguido libertar-nos, de motu próprio, de todas as preocupações lógicas ou morais”, poderemos desfrutar melhor desse desejo, “único rigor que o homem deve se impor”.“É nosso dever partir incondicionalmente em busca da surpresa, apenas por aquilo que ela em si própria representa. (...) O fato de se admitir a necessidade natural como o oposto da humana ou lógica necessidade, o fato de se renunciar à louca tentativa de as reconciliar, de se negar a persistência do amor à primeira vista, e na vida, a perfeita continuidade entre o possível e o impossível, é a prova de se haver perdido aquilo que eu considero ser o único e verdadeiro estado de graça”.O único pensamento é o do ser amado, para quem todas as palavras se dirigem num determinado momento e durante determinado espaço de tempo, porque “tu és mil, basta decompor todos os gestos que te vi fazer”.
Nessa multiplicidade, que é inerente ao ser humano, estamos nós, trafegando algum momento paradisíaco que nos foi concedido, para vislumbrar o futuro como promissor e palpável. “Independentemente do que possa ou não acontecer, a espera é que é, na realidade, magnífica”, porque na espera é que estão todos os atos e que têm, como finalidade maior, o amor.

Thereza Christina Rocque da Motta


domingo, 29 de julho de 2007

AREAL

APRESENTAÇÃO

Entre os primeiros livros de Thereza Christina Rocque da Motta, publicados no início dos anos 80 e este recente Areal permeiam mais de dez anos de muita experiência de vida e amadurecimento literário. Areal pode ser lido como um só poema (mais um envoi, “Décima lua”), uma longa fala amorosa, que se desdobra lentamente, à medida que vai revelando ao interlocutor, o homem amado, os abismos da intimidade e a atmosfera de magia que se instala entre os amantes e o mundo à sua volta. Areal exalta a fé no amor como o centro para onde converge toda inquietação humana, sempre desejosa de ultrapassar os próprios limites: “Amo-te pelo que transpareces”.
Neste ponto, Thereza Christina não esconde seu fascínio pela utopia surrealista: “C’est de l’amour que les surréalistes attendent la grande révélation” (F. Alquié). Por isso, a cada poema, ou a cada desdobramento do mesmo poema, uma nova dimensão de sonho e ousadia se acrescenta ao espaço comum habitado pelos amantes, como que mergulhados em desabalada vertigem: “Atinges o momento do ciclone,/ a órbita aberta do planeta”. A vertigem, porém, se dá apenas enquanto proposta de vida, não enquanto ato poético. A escrita de Thereza Christina, ao contrário da escrita automática dos surrealistas, não busca a abundância e o desbordamento, mas a contenção, metáfora do cioso controle que os amantes pretendem exercer sobre o incontrolável da experiência amorosa. É que o amor absoluto, o de Areal, o surrealista ou o mais antigo, se alimenta sempre de paradoxos.
Carlos Felipe Moisés




PREFÁCIO

A ausência de poesia no Brasil de hoje tem pouco a ver com os vazios que em todos os tempos anteciparam e atraíram a poesia, criados a partir de sábias e incontroladas alusões que se definem às vezes como material poético. Temos sofrido de excesso de evocações, seguido de escassez de resultados, pelo que é possível pensar que o vício da retórica fez em nós estragos que somente um jejum do discurso poderia reparar. Essa dieta se faz de boa poesia, que a seu modo se faz de silêncios bem dosados, que quase sempre se nutre do costume antigo e pouco recordado de escutar o mundo e de sondar a vida.
A diferença entre omissão e silêncio nessa arte de viver que é a poesia, diz tudo que se precisa saber a respeito da beleza e do descobridor da beleza. O poeta, o leitor de poesia, o homem inocente no melhor sentido da palavra, é o aprendiz que não quer ser mestre, porque descobriu (quando sabe que descobriu) que a graça da vida e a paixão sem alvo que move o religioso e o poeta, são filhas desse aprender eterno que sustenta o homem no infinito presente, que já se chamou Walhala, nirvana, paraíso ou wu-wei. A relação mestre-discípulo que o pensamento autoritário modificou no Ocidente, é aqui como no princípio, apenas o aprendizado da percepção, da alegria de obedecer em plena liberdade, sendo sucessivamente aquele que ensina e aquele que aprende, na plena delícia de estar vivo e desperto.
A poesia que se revela como supressão inspirada do supérfluo, com absoluta inexistência de esforço, mas com imenso poder de esclarecimento, é a matéria-prima que falta num mundo que se preocupa demais com petróleo, carvão e plutônio, sem o que se pode com certeza viver. Essa poesia de Thereza Christina Rocque da Motta faz um acordo com o acaso e se constrói nas esperas e nos vazios que geram a criação. Seu trabalho é parente daquilo a que se referia Chuang-Tse, quando disse: “O verdadeiro sábio prega a doutrina sem palavras”. Não há uma poesia que alude, apenas, e uma outra que discursa e se explica. Uma é poesia, a outra não é nada. Esta de Thereza Christina é daquelas que são atraídas e antecipadas pelas alusões que se definem como material poético. Nela estão os vazios que são como as pausas na música e, como elas, distribuem a beleza e preparam o coração.
Luiz Carlos Lisboa





A aparência nada mais revela do que um lado: o outro é mistério que é preciso desvendar; o que se guarda no descampado, onde o possível não se vê e não se espera e, por detrás da desolação, vemos a realidade por miragem. O areal é a revelação do que parece ser, do que se quer dizer e muitas vezes não está lá, mas se tem a certeza de que existe, em alguma parte do visível, o invisível.





Give me a wildness whose glance no civilization can endure.
Henry David Thoreau (1817-1862), in Walking


Venturoso também em tuas securas
nos areais branquejados e estéreis

Nas imensuráveis vacuidades dunosas
Areentas Omissas

De até ao horizonte ver nada
e de nada abaixo nem por sobre
E nada além do imenso nada

(Um nada tão oniforme, porém!)

Renato Gonda (1959-), in Fugitivo dos Homens



– (...) nunca vi nada, nada, que se possa comparar
com o deserto... Pai do Céu, como é bonito!...
– O que quer dizer?
– Não sei explicar... De resto, não creia que tenho sempre
saudades daquelas palmeiras... (...) Só quando me sinto triste...
(...) ouça bem: no deserto... no deserto há tudo e não há nada...
– Que quer dizer com isso?
Sem reprimir um gesto de impaciência, murmurou:
– O deserto... é Deus sem os homens!...

Honoré de Balzac (1799-1850), in Uma paixão no deserto.



Me admira ver-te
preso
casco jogado
neste areal.





És perfeito,
porque nascido do acaso.


Eu, que sem preocupação pude buscar-te,
aceito tua sina de camaleão de imagens.
Teu prazer quer alvuras e eu,
amadurecida de teus tons, sou mais frágil
entre as mãos que encerram o destino.
As manhãs, os breves sussurros,
o mastigar lento de maxilares.
Conheço-te como a mim,
tua casa, tuas vestes, tudo que te pertence.
Onde colocares a mão, eu sei,
aqui estiveste.
Não te amo pelo nome.
Amo-te pelo que transpareces.



Sei
a miragem de me ver deserta,
arrancados de mim todos os desejos,
enquanto desejo, ainda.

Sei que estou aguardando,
noite agora, amanhã, depois.
Sei que nas horas de fastio,
destruo o silêncio
e construo outro.



Tua face na treva
tronco em meio à ventania
sob folhagens e tempestade.
Estás aqui e te dou de beber
de meu seio esquerdo,
porque mais farto
e teus lábios sorvem
a seiva da árvore que nos acolhe
em sombra.



Me precipito,
vão que se abre sob os pés.
Tombo, língua e forma
dissecadas,
palmas, risos,
teu olho e tua boca
difamantes.
Temporal longicidade
de espectros.



Nada de perguntas,
não até que eu descubra
o nó para desatá-lo
ou até que o nó não exista.

Fatal, como tudo
que é cheio de sentido,
livrarmo-nos do mal
que faz da vida esse jogo
de peças que faltam.
Um dominó ao contrário.
E nós o resgate.


1
Abissal, teu olho
pousa sobre o mármore.
O lago penetra a cor do dia,
estreitos que vasculhamos
toda vez, pela manhã.

2
A viagem, longa,
arrastava-nos para mais longe
que a memória dos lugares
por onde passávamos.

3
Almas se entendem
e corpos se entendem melhor.
Um murmúrio de horas
escorre sem deixar vestígios.

4
Tens desejos de um menino.
Teu riso faz parte dos barulhos da casa.
Teu riso ecoa
dentro do coração vazio.



Porque te quis e ninguém te alimentava
de paixões,
vieste, olhos mareados
e tal foi tua fome,
que abraçaste inteira a minha vontade
de dar-me.
Não quis ir ao teu encontro,
senão como fora a tua vinda
na véspera, cheia de expectativas e silêncios.
Não te esperei em vão:
pude aguardar-te, porque quis que viesses
e por que te quis antes de mais nada,
meu nome tornou-se precioso para ti,
com saudade e vozes dentro,
ruídos de uma vontade estranha,
porque não esperavas por mim
e me buscaste.



Existe, além da parede,
a espessa aspereza do tempo.
Todo olhar é denso
quando contempla o outro.
(Mergulhamos na fotografia
impressa da memória
e ficamos retidos,
adereços discretos da paisagem.)

Espera o fruto.
A hora se biparte e o alçapão está fechado.
Atinges o momento do ciclone,
a órbita aberta do planeta.

Espera a volta.
Teus ombros nus encostados na parede,
tua face na penumbra,
retendo as luzes do quarto.



Acostumei-me a observar o indefinido.
E a aceitar tudo que me dissessem,
mesmo adeus.
As lembranças daquilo
que não guardei,
atos e falhas dos meus gestos
e não passar sua sensação de eternidade.

(Em cada pedra, a seiva
que a mantém úmida.
Pedregulho imerso
na transparente alma marinha.)

E a esperar a travessia,
antes do sinal das embarcações.
Sem vento que antecipe a manhã.




Temos torso
e mãos de deuses
a indagar
a visão sobre o mar.
Encontro
de falas longínquas:
talvez membros do mesmo corpo
agora reunidos.
Tempo: limo entre os dedos.
Fogo contido
nas escamas dos peixes.



Mistério há em nada dizer,
ou dizer tudo.
Teu pensamento,
cativando o sonho,
esfinge pressentida.

Mistério, em nada possuir,
ou possuir tudo,
senhor de mares e montanhas,
Neptuno caído, Ulisses regresso.

Nada ser e ser tudo.
Refazer o feito, sem saber.



Tudo tem teus ruídos.


Quando voltares, verás as portas fechadas
e esperarás a noite chegar.
Entrarás no quarto,
passarás a mão sobre os móveis
e me olharás, enquanto durmo.
Talvez vás, novamente, sem despedir-te.
Mas quando não fores mais aquele que volta
e tomares a ti o prazer da colheita,
então estarás no limite de conhecer
os motivos que te fazem estar aqui.




Onde estás
ser outonal e primeiro,
oco de árvore
escavado em mim?

Sopro arquitetura entreato.
Simples como tuas coisas mais amadas
e este o simples abril
que conheceste.

És tal parte de tempo,
antepassado passando adiante.
Tudo desfaz-se diante dos olhos,
para que não mais vejam
o que puderam ver agora.

Aguardo-te, como se viesses.
A espera faz tudo isso mais completo.




Não importam mais os nomes
dados às coisas.
Serão as mesmas,
encerradas no pó
que se sedimenta em tudo.
Retiremos as vendas,
os panos,
as louças dos armários.
Façamos a ceia dos antigos,
com os objetos nos mesmos lugares.
E esperemos os que vierem
amanhã.


Décima Lua

A laranja era a única luz dentro do quarto.
Egon Shiele


Enquanto as barcas sobrevoam o ar estático,
estamos entre os verdes olhares de gatos.
Tudo é belo.
Penetramos as células humanas,
passagens entre orifícios e arestas.
À noite, procuramos nos ver melhor.
É o sonho que a habita?
Vivemos e são nossas súplicas
as únicas que se ouvem.
Tudo está parado e se move.
Nada é mais extremo que a permanência.
Ficamos aqui, o segredo entre nós.
As vestes caem e se prolongam pelo chão.
São memórias mais do que tudo
e vasto e largo o pausar das mãos em movimento.
Somos os que desfrutam da pele seca das maçãs.
Enlouquecemos, a nudez a tomar conta,
desfiando as fibras dessa nova borboleta.
O ar impregna-se do mesmo cheiro dos corpos.
Vértebra a vértebra, distendemos o êxtase.
Avolumam-se os seios umedecidos no beijo.
Vocábulos balbuciados, não há som.
Domado o instante, a serpente recolhe-se.
Reconhecemos pelo tato a escamosidade
desse momento.
Da casa inabitada, conhecemos os reféns
e os objetos, danificados pelo tédio.
Sabíamos de tudo, embora não disséssemos.
O cálice preparado, o veneno, dilatadas pupilas.
Nosso nome encravado em pedra.


POSFÁCIO

L'amour choisit l'amour sans changer de visage.
Paul Éluard

A exteriorização do amor não deve causar medo. O amor é realidade e, como tal, é para ser vivido, sem pressupostos, para que dele seja extraído sua essência. E, mesmo assim, há ritos que são seguidos, como voltar-se para o amado, num movimento contínuo e mudo.
Em L’Amor Fou, André Breton, em várias passagens, descreve essa trajetória amorosa, que faz-nos sentir constantemente inebriados e, por vezes, assaltados por dúvidas, que nada têm a ver com o amor, senão com a fragilidade do ser humano. Ele diz: “Esse ser está sujeito a sofrer e, o que é pior, a equivocar-se sobre as razões desse sofrimento. Tendo feito dádiva total de si mesmo, é levado a incriminar o amor, quando o defeito reside precisamente na vida.” E ainda, “perante e contra tudo, manterei que o sempre é a grande chave. Tudo quanto amei – quer o tenha ou não conservado comigo –, sempre haverei de amá-lo. (...) Do amor, apenas quis conhecer as horas triunfais (...) Não nego que o amor tenha contas a ajustar com a vida. (...) Essa cega aspiração pelo que há de melhor, bastaria para justificar o amor tal como eu o concebo, o amor absoluto, único princípio física e moralmente seletivo capaz de responder pela não vanidade do testemunho e da passagem do homem pelo mundo. (...) Só acontece o que não se espera”.
Se fomos unidos pelo acaso, que não existe, então deve existir uma razão intrínseca, mesmo que desconhecida para nós. Ela existe, a partir do momento em que “você me faz bem”. Em hipótese alguma eu tentaria abolir isso por meras razões formais, por medo ou dúvida.
Jamais deve-se renunciar, se o motivo não for o próprio sentimento de renúncia. Para Breton, “há o erro moral, o qual contribuiu para que o amor fosse, através dos tempos, apresentado como um fenômeno decadente e que vem a ser fruto da incapacidade inerente à grande maioria dos homens de se libertarem de qualquer preocupação - seja ela temor ou dúvida – alheia a esse amor (...). No dia em que tivermos conseguido libertar-nos, de motu próprio, de todas as preocupações lógicas ou morais”, poderemos desfrutar melhor desse desejo, “único rigor que o homem deve se impor”.“É nosso dever partir incondicionalmente em busca da surpresa, apenas por aquilo que ela em si própria representa. (...) O fato de se admitir a necessidade natural como o oposto da humana ou lógica necessidade, o fato de se renunciar à louca tentativa de as reconciliar, de se negar a persistência do amor à primeira vista, e na vida, a perfeita continuidade entre o possível e o impossível, é a prova de se haver perdido aquilo que eu considero ser o único e verdadeiro estado de graça”.O único pensamento é o do ser amado, para quem todas as palavras se dirigem num determinado momento e durante determinado espaço de tempo, porque “tu és mil, basta decompor todos os gestos que te vi fazer”.
Nessa multiplicidade, que é inerente ao ser humano, estamos nós, trafegando algum momento paradisíaco que nos foi concedido, para vislumbrar o futuro como promissor e palpável. “Independentemente do que possa ou não acontecer, a espera é que é, na realidade, magnífica”, porque na espera é que estão todos os atos e que têm, como finalidade maior, o amor.
Thereza Christina Rocque da Motta




THEREZA CHRISTINA ROCQUE DA MOTTA, paulistana, nasceu em 10 de julho de 1957, filha de pai diplomata e mãe arquiteta. Advogada e tradutora, viveu em Boston, Assunção, Montevidéu e Rio de Janeiro até 1975. Desenvolveu sua vida literária a partir de 1979, quando já vivia em São Paulo e trabalhava como editora do Jornal ANÁLISE, do DCE da Universidade Mackenzie. Fundou o Grupo POECO-SÓ POESIA em 1980, e publicou antologias, divulgando novos poetas em concursos, exposições e leituras de poesia. Publicou Relógio de Sol (1980), Papel Arroz (1981), Joio & Trigo (1982) e o poema Décima Lua, na antologia de poesia erótica Carne Viva (1984), organizada por Olga Savary, antes publicado em pôster (1983), com ilustração de Dimitri Ribeiro. Desde 1984, leciona inglês. Traduziu dois livros, publicados em 1992 pela Editora Rosa dos Tempos. Integra a Antologia da Nova Poesia Brasileira (1992), que reúne 334 poetas, editada pela Fundação Rio da Prefeitura do Rio de Janeiro e a Editora Hipocampo, também organizada por Olga Savary. Foi chefe de pesquisa brasileira do Guinness Book, o Livro dos Recordes, publicado pela Editora Três, em 1992 e coordenadora de pesquisa e tradutora da redação de Projetos Especiais da Editora Três, trabalhando na edição da Gazeta de Minas, publicado juntamente com a História Econômica de Minas Gerais (1994), da revista IstoÉ Turismo (1993/1994) e os Mil que fizeram o Século 20, do jornal inglês The Sunday Times, encartado em fascículos na revista IstoÉ (1994/1995).